quinta-feira, 22 de outubro de 2009

Encenações

A linguagem, a despeito do que os conservadores podem pensar, não é imóvel e nem mero instrumento de uso. Essa língua que usamos, essa língua que nos leva de uma palavra a outra, será sempre mais de que uma língua – se dividirá e se multiplicará, o mesmo ocorrerá com os caminhos às palavras. Para aquele que simplesmente dispõe de palavras, seja para transmitir idéias ou para concatenar conteúdos de forma logicamente compreensíveis, esse instrumento obviamente não terá valor algum. Para o comércio da mercearia ou o bilhete que se vai deixar ao seu colega de trabalho não faz-se nada com ela a não ser usa-la da maneira como o simples motorista dirige o seu carro. Quer-se da maneira mais simples chegar do ponto A ao ponto B – mas pergunte aos corredores de Fórmula 1 se encaram sua função de motorista assim –. É só quando se começa a desconfiar dessa simplicidade, dessa arquitetura fechada, tão concatenada em si mesmo é que começa a se abrir um buraco nesse círculo que se fecha a nossa volta. Não, sair da linguagem é impossível, desde o momento em que pensamos, em que imaginamos, qualquer fala será traduzida para algum signo, seja o portugês, seja imagens, seja a matemática. Impossível sair do círculo, embora impossível seja também, querer ficar dentro dele quando se percebe seu traçado lento e dissimulado nos envolvendo, nublando nossas vistas, nossa fala.

Uma via excêntrica se anuncia, porém. Se há uma lição que podemos tomar de Roland Barthes (e há muitas) é de que é possível lutar. De novo: não é possível nunca pular fora desse círculo, outra lição de Barthes, mas há um caminho, uma saída que nos põe frente a frente com o movimento que traça nossa prisão. literatura. Sem letra maiúscula para não traí-la de sua discrição. A literatura se imporá como a grande célula revolucionária que ameaça esse domínio lingüístico, fingindo estar nos conformes, sempre com aparência de representação, quando o que está realmente em jogo para ela será sua encenação. Jogando com as palavras, jogando com a forma, agindo como se estivesse nos conformes, a literatura irá arriscar a língua, anunciar o seu fim e, por fim, fazer-nos sonhar com um além-linguagem. Assim agirá o texto que nos fascina. Ele nos promete, não um caminho para fora da linguagem, mas uma via que não nos leva a lugar algum: para o nada – aí desponta o horizonte da linguagem. Através das suas encenações subverte-se as estruturas da linguagem no momento em que a escritura aponta para linguagem. Joga-se a luz no iluminador que antes buscava esconder-se embaixo de seu brilho, tão brilhante que impedia que o iluminado olhasse em direção a luz. A encenação quebra a pretensão da linguagem ao revelar seu caráter de construção e anuncia uma distância infinita entre palavra e verdade – distância que antes era dissimulada agora é denunciada.

Nossa segurança é posta em jogo, em perigo. Não há mais como se esquivar do círculo que se fecha ao nosso redor, vêmo-lo e nos imaginamos presos, para sempre, sem volta caso ele consiga se fechar. Linguagem interrompida. Texto interrompido, sem fim, sem fechamento, sem destino final, para que não nos percamos. Nos jogamos no abismo da palavra interrompida para poder ao menos enxergar que a palavra se fecha, que a mão que traça esse círculo em nossa volta não é invisível.
A literatura e o direito a morte Maurice Blanchot questiona a voz que vem quando se escreve. Voz que se inscreve na pena e pergunta – impondo àquele que escreve na sua escrita a questão: Com que direito? O que você poderia falar aqui?. Para Blanchot o começo dessas questões é o começo da escritura, é o começo de qualquer possibilidade de literatura. E não há, para o escritor, contato mais aterrorizante do que esse derradeiro confronto com o nada. Confronto que não acaba no escrito mas que se impõe a cada vez com mais força porém com sutileza redobrada fazendo o escritor estar no risco de uma queda maior a medida que dissimula o vazio com o já escrito – pois não há certezas nesse confronto. Se não há certeza nem de um adversário – a impossibilidade de escrever – como será possível sair vitorioso do confronto? É possível ser vitorioso contra nada? Pois quando olhamos já não há mais conflito, já é tarde demais, foi-se, como Eurídice se vai no momento em que Orfeu a busca. A escritura se dissimula como resposta ao nada: estou aqui!, nos diz ela; mas apesar disso deixa-nos com um leve rastro de uma (im)possível ausência que jurávamos ter encarado.