quinta-feira, 26 de novembro de 2009

As pequenas belezas. (parte 1)

Hoje comprei dois livros num sebo: Jardim, cinzas de Danilo Kis e O ofício de viver de Cesare Pavese. Do primeiro nada li, do segundo só um livro que é considerado uma obra que foge aos traços costumeiros do autor. Nada tenho, portanto, a falar desses dois autores. O que posso falar é do que tenho. Jardim, cinzas e O ofício de viver. Só isso tenho por enquanto e não preciso de muito mais. Sei que pode parecer estranho mais sou e não sou um leitor exigente. Por um lado basta apenas uma frase, um verso, as vezes até uma palavra para que o livro baste. Não digo que as grandes narrativas, experimentos linguísticos, personagens memoráveis passem desapercebidos ou desvalorizadas. Deus sabe que tudo isso aprecio, a questão é que consigo ser satisfeito também por essas menoridades.

Não consigo não ficar abismado com esses dois títulos. Permitam-me uma pequena viagem nesses nomes. Se não consigo abrir a primeira página e começar a ler
Jardim, cinzas é que este título já me satisfaz. Já me leva a caminhar pelos caminhos da imaginação. Não fala Jardim de cinzas, Jardim em cinzas nem Jardins e cinzas. O autor diz apenas Jardins, cinzas como se fossem imagens de uma memória que não consegue se fixar, não se quer fixar. Tanto tempo já passado, tantas memórias acumuladas que se dispersam sem que o autor consiga pô-las num sentido. Jardim, cinzas como um mantra que apenas sugere onde podemos estar, como podemos estar. Espalhados como cinzas por um jardim. As memórias já aconteceram, já não são mais as vivências que sentimos, longe está a brisa do presente que batia em nossas faces resplandecidas pelo calor do sol. Longe das vivências há apenas memórias, mortas, exauridas, queimadas. Cinzas. E no entanto se essas cinzas da nossa vida já não são mais é somente a partir delas que poderemos seguir e caminhar. Essas cinzas não são jogadas ao mar, estão no jardim. Dostoíevski põe como epígrafe de seu monumental Os irmãos Karamázov: “Em verdade, em verdade voz digo: Se o grão de trigo, caindo na terra, não morrer, fica ele só; mas se morrer, produz muito fruto”. No jardim essas memórias devem se instalar, mas não para continuarem como memórias. É preciso que sejam esquecidas, perdidas para que se possa continuar. Se não podemos continuar sem o passado, é preciso que não nos prendamos em seus labirintos. Só o passado poderá semear o futuro, abrir espaço para que este aconteça. Jardim, cinzas: não se pode continuar sem abrir mão. É preciso espalhar pelo jardim o nosso passado, desprender-se dele. Afinal, a memória é sempre um já se foi, um já não é. Só é cinza.