sexta-feira, 25 de junho de 2010

Zumbidos lidos


Há uma certa instabilidade presente na novela Disgrace, de J. M. Coetzee. Algo como o zumbido de um mosquito, que nunca podemos ter certeza se realmente sobrevoa os nossos ouvidos a menos que esteja sobrevoando os nossos ouvidos.

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Não sabemos, num primeiro momento, se aquilo que nos agita são as atitudes moralmente oblíquas do protagonista – oblíquas não por se mostrarem como ilógicas ou sem sentido, mas por ser uma moral que se recusa a fluidez do mundo atual. Rígida é a palavra que conduz as atitudes do protagonista, preferindo cair num ostracismo (se é que já não estava) e manter-se fiel à sua balança do que curvar-se e esquivar-se da responsabilidade dos seus atos.

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O mundo onde caminha David Lurie já não é mais o mesmo. Para um acadêmico, decadente, que ensina a poesia romântica numa metrópole esse novo mundo que se anuncia na África do Sul, principalmente no interior, não lhe deixa fincar os pés. Acostumado aos resguardos da guia mestre do mundo ocidental, a razão, David simplesmente não sabe lidar com Petrus, esse homem da terra que ainda que caipira, maneja como ninguém as regras do homem branco com as dos nativos. Manejo esse, porém, que não se dá de forma límpida e sutil, mas de maneira grossa e tosca que gera verdadeiros Frankensteins como a proposta de casamento (e de proteção) que Petrus faz a Lucy no final do livro em troca da sua terra, misturando a ganância do homem branco com obrigações familiares nativas. Como confiar nas palavras de um homem assim?

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Falando em palavra, vem a mente um dos poetas favoritos de David, William Wordsworth. Palavras que valem. No início do livro temos a leitura que o professor Lurie faz de um poema de Wordsworth sobre a inquietação de um homem com a falta de graça no mundo real.

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No mundo real David encontra apenas violência. Seja em atos de puro ódio como o estupro que sua filha sofreu (sem contar também nas agressões físicas que sofreu ao tentar proteger Lucy) ou em coisas estúpidas como o trato que os homens do incinerador davam aos cachorros sacrificados – por serem abandonados, por não terem um lugar no mundo –, quebrando seus ossos a pancadas para que entrassem direito no cremador.

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O zumbido é uma leve sensação de hesitação que parece percorrer toda a fala do narrador em terceira pessoa desse livro. Teme-se a todo o momento de que aquela escolha se mostrará equivocada, se mostrará incapaz de se subscrever aos desejos do autor. Momentos onde isso se evidencia podem ser encontrados em certos momentos onde até esquece-se, devido ao uso do discurso indireto, livre ou não, que narrador e personagem não são uma só pessoa. Essa fala incerta acaba por deixar comprometida qualquer tentativa de apreender aqui uma realidade objetiva.

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Talvez esse livro não passe de um zumbido que simplesmente não nos deixa esquecer que algo há de errado.

terça-feira, 15 de junho de 2010

À memória de Austerlitz


W. G. Sebald termina seu último livro (último publicado em vida) com um relato do narrador sobre o livro que lia, livro que o protagonista, Austerlitz (também título do livro) havia lhe dado no primeiro encontro dos dois. O livro em questão é a tentativa de reconstrução do passado de um velho rabino lituâno.Mas o autor desse livro, em meio a todas as suas peregrinações, nada encontrará, nenhuma memória, nenhum registro; encontra apenas rastros de uma destruição que tudo nivelou. Se havia algo ali antes não se pode mais saber.

Austerlitz relata, através de um conhecido seu, a busca de Jacques Austerlitz, um historiador de arquitetura, para compreender uma inquietação que o persegue durante toda a sua vida: a constante impressão de um exílio, a sensação de não pertencer a lugar algum. Inicialmente tomado por algumas visões toscas e delírios que o acometem regularmente Austerlitz encontra a sua Madaleine numa visita noturna a uma velha estação de metrô. Vagando por esse reduto de almas perdidas na noite se depara com a memória de sua chegada na Inglaterra onde foi recebido pelos pais adotivos. Esse encontro que o põe em mais um delírio acaba por levá-lo aos cantos mais recônditos de sua memória. Começa a tornar-se consciente de certos bloqueios que impunha a si mesmo, como a completa ignorância que tem em relação a Alemanha ou as vertigens que sentia quando tentava se lembrar de certas recordações, até que enfim, quase por um acaso desencobre em Praga não o seu passado, mas breves indícios de que teve um lugar. Indícios de quem poderia ter sido Jacquot (agora de prenome tcheco) Austerlitz.

E durante toda essa caminhada de Austerlitz há alguns elementos que se destacam. Em primeiro lugar o livro é recheado de fotografias, muitas vezes elípticas, que supostamente o próprio teria tirado. Essas fotografias que muito além de exemplificar o que o autor descreve acabam dando-nos uma nova camada de interpretação dos relatos por nos mostrar aquilo que chamava o olhar do fotógrafo, aquilo que talvez o trazia mais perto dos seus objetivos. Enfim, para apontar para aquilo que escolheu mostrar.

Outro ponto é que ser um historiador de arquitetura não é irrelevante. Nas recordações presentes no livro existe um privilégio muito grande a leitura de obras arquitetônicas. O livro tem duas das suas mais belíssimas passagens na descrição do forte de Breendok e da nova Bibliotèque Nationale. Austerlitz enxerga nessas obras verdadeiros monumentos de um pensamento que estará fadado a ser superado e que deixará como sinal de sua existência apenas essas velhas obras arquitetônicas.

E há, por fim, o silêncio que circunda a obra. Ao longo de grande parte das suas peregrinações seja em parques, estações, arquivos, cemitérios, bibliotecas, museus, qualquer que seja o lugar, ou está vazio ou o número de pessoas ali é mínimo. O livro e os relatos de Austerlitz acabam ficando constantemente envolvidos por essa sensação sombria, como se ele fosse apenas um fantasma a vagar por um mundo já há muito abandonado.

Mas Austerlitz não é um livro sobre o resgate da memória de um homem. Esse livro cujo título tão facilmente se confunde com Auschwitz trata-se na verdade de um momento de confronto da europa com um esquecimento. Assim como Austerlitz passa grande parte da sua vida ignorando e muitas vezes fugindo de seu passado, o velho continente, durante os anos subsequentes a segunda guerra mundial, desvia suas atenções da força que nivelou seus estados, seus prédios, seus povos ao solo. Com os olhos virados apenas para o que acontece lá fora (falamos aqui evidentemente da guerra fria) toda o vazio gerado pela destruição da guerra acaba em pouco tempo sendo preenchido pelas forças emergentes da URSS e dos EUA que constroem, junto as suas bases militares, uma nova cultura sem relações naturais com a sua memória. É portanto com o fim da guerra fria, fim desse foco, que a Europa tem a oportunidade de tentar desenterrar o que resta da sua estória. Medo de perceber que para enxergar esse monstro que a assolou basta olhar no espelho.

O livro termina com um livro, um livro que repete, ou antecipa, o caminho de Jacquot (não mais Jacques) Austerlitz: uma busca por seu (ante)passado que encontra apenas terra batida.


quarta-feira, 9 de junho de 2010

A puta de Bolaño

A personagem feminina do conto As putas assassinas de Roberto Bolaño talvez acene para a relação (anti-)ética entre a linguagem e o homem. O conto é simples: trata-se de um diálogo entre uma mulher, presumivelmente uma puta e Max. A puta rapta Max e, prestes a tirar a sua vida, justifica o assassinato por vir. Há duas coisas, porém, que são dignas de nota nesse conto. Max não fala. Ainda que este conto consista apenas de um diálogo, na vez de Max falar há apenas tentativas de sinais através de expressões desesperadas da sua face e movimentos da sua cabeça, seu corpo, visto que da sua boca nada sai além de gemidos vazios. Não pode falar, não pode dar respostas e nesse seu silêncio fica exposta toda a sua impotência – refém da sua condição de falante –; Max é reduzido a nada.

Também é digna de nota a obsessão da puta por Max; obsessão que leva ela a querer matá-lo (supostamente) pela sua negligência egoísta enquanto faziam amor. Essa mulher, pois é mulher antes de ser puta, quer ser seduzida, quer que o homem saiba lidar com ela – ela não se importa em dar prazer a ele, só quer receber em troca a devida atenção. Está cansada de se dar e ser esquecida, usada, bolinada, adulterada, tudo isso sem que o seu possuidor se dê por conta dela.

A língua, essa puta, poucas vezes ganha a vez. É deixada sempre no canto, como algo já dado, já pronto é só pegar e dizer – sem trato, sem cuidado (que não se pense aqui em gramaticalisses). 

E, no entanto, sem ela o que somos? Talvez a sorte nossa seja que ela ainda não percebeu o nosso grau de dependência a ela. Ou talvez percebeu. Talvez já nem falemos mais. Talvez tudo o que falemos não passem de gemidos vazios, movimentos da cabeça, do corpo, expressões desesperadas das nossas faces.

domingo, 6 de junho de 2010

Tchekhov.


Em suas próprias palavras: As obras de arte dividem-se em duas categorias: as de que gosto e as de que não gosto. Não conheço outro critério.

Das dele gosto, e muito.

Mais não posso, nem sei, falar. apenas acrescento que quando leio cada conto seu me lembro porque amo tanto a leitura como ele me faz bem. Exemplo disso é A dama do cachorrinho, conto perfeito.

(Mais Tchekhov aqui)

9. - Perec e a lembrança


A metonímia talvez seja das três grandes figuras de linguagem a menos requisitada pelo universo literário. Longe de ter a subversão que a ironia traz à linguagem ou a elegância que a metáfora veste qualquer discurso – dentre tantas outras qualidades dessas duas figuras –, a metonímia acaba muitas vezes ficando à margem na hora em que os escritores escolhem seus instrumentos. Se afastam pelo perigo que ela representa. O que a metonímia traz é um movimento muito particular que transforma a linguagem numa grande ligadura para todos os elementos do universo através da recordação.

No romance de Georges Perec A vida: modos de usar a cena em que o pintor Valène, em pé em seu quartinho, observa os esboços e planos de sua magnum opus é não só um dos pontos mais emocionantes do livro mas a grande metonímia para o trabalho que Perec realiza que é por sua vez uma metonímia da história da literatura. Ao pintar a si mesmo pintando todas essas histórias que acontecem no nº 11 da Rue Simon-Crubellier Valène dá voz ao dispositivo que usou para realizar essa grande obra onde se encontra escrito. Não se trata de um livro, como parece inicialmente, que vai simplesmente narrando eventos fictícios que acontecem em um edifício parisiense – isso não seria o bastante para ser literatura.

Como Valène, que não passa de um pintor que não pinta nada de novo, Perec será somente um contador de histórias de segunda mão. Cada uma dessas histórias, às vezes mais ou menos elípticas, nunca foram de sua autoria, mas sim da mão de outros escritores, são histórias que já foram contadas (mais de) uma vez. Exemplo disso é quando um dos moradores do edifício foi, em seu passado, o gerente do circo que tinha como atração o trapezista de Kafka que não podia sair do seu trapézio. Internas como essa abundam o edifício nº 11 da Rue Simon-Crubellier – edifício este que acaba se revelando não um lar, mas uma grande biblioteca.


Perec, como se vê, não parece interessado em contar algo de novo. O que há é apenas um labirinto de Creta – como no conto de Borges –: a literatura expondo a impossibilidade de se fazer o novo, não porque não é possível fazer, ele é e é feito a toda hora, como nesse livro de Perec; mas porque a linguagem não consegue deixar de recordar suas memórias que não atendem a outro nome que não literatura.

sexta-feira, 4 de junho de 2010

Por uma escrita fotográfica


Walter Benjamin talvez tenha sido o melhor escritor não-escritor a ter existido. Dono de apenas uma pequena produção que poderíamos chamar per se de literária – alguns livros breves de crônicas e relatos e um livro de sonetos – que no entanto será suficiente para firmar sua posição como um dos maiores estilistas do século XX. Talvez se Walter Benjamin escrevesse no contexto atual não haveria dúvida quanto a sua condição de escritor mas talvez se Walter Benjamin escrevesse somente agora não existiria o contexto atual para recebê-lo.

Se conquistou essa posição isso certamente foi fruto de sua escrita fotográfica. Quando escreve não há uma preocupação em narrar acontecimentos corrídos ou contar estórias. Ao se focar em apenas algums recordações quase irrelevantes e se apoiando em objetos, que muitas vezes passariam desapercebidos, interessa-o impôr no seu texto toda a potência inscrita nesse instantâneo de memória. Interessa-o construir uma imagem e não um filme. Benjamin (re)inaugura uma nova escrita ao se firmar somente no plano vertical da temporalidade.

Podemos observar esse estilo fotográfico no trabalho de S, também. Ainda que assuma uma forma diferente – enquanto Benjamin tem uma atração em seus retratos por objetos, S. retratará relações (não relacionamentos, mas relações entre pessoas A. e B.) – manterá-se esse interesse em explorar um fragmento temporal da memória. Não se trata aqui, porém, de uma recaída num sentimentalismo barato que busca reviver o passado ou autopromover-se às custas da linguagem literária. O que está no alvo da objetiva de S. são os contornos que cercam e, muitas vezes, ditam  os contatos humanos – contato inclusive de um eu consigo mesmo. Acontece aqui, portanto, algo muito perigoso – algo que vai justamente na direção contrária de qualquer memorialismo barato que não mede esforços para se resgatar, para preservar seu eu –; S. acaba por abrir mão da sua memória pessoal, sacrifica-a, para que possa vir a aparecer em cada uma das suas fotografias os contornos dos fotografados.

terça-feira, 1 de junho de 2010

Blanchot pelas margens/Kafka, o delator


Não me impressiona nem um pouco que Blanchot tenha sempre se demorado mais em textos marginais. Para um autor tão preocupado com o fora, com o silêncio, o melhor espaço para poder trabalhar sempre será a marginalidade da literatura, aquele lugar onde a ausência da obra não se calou. O que lhe interessa são os pequenos becos sem saída da literatura onde podemos escutar silêncios que dizem aquilo que justamente não se pode dizer, que a obra luta por dissimular para que não traiam seu segredo. Por isso Blanchot recorrerá tanto a autores deslocados, seja por perseguição (Marquês de Sade), pela distância (Jorge Luis Borges*) ou pela desistência (Rimbaud), quanto a autores renomadíssimos – que, no entanto, quando os ler, se aterá à elementos periféricos; às notas (Joubert), aos rascunhos (Henry James) , às cartas (Artaud), aos diários (Gide), aos planos de obras nunca concretizadas (Mallarmé) e às obras inacabadas (Kafka).

Não se pode surpreender, também, que o autor predileto para Blanchot (tendo inclusive um livro dedicado a ele) não seja outro que não o Kafka. O autor marginal por excelência: Tem um diário, ou seja, tomou a via avessa às letras (ou seria um atalho?); das suas obras mais celebradas várias delas são inacabadas (O processo, O castelo, outros tanto contos); há, por fim, o fato de Kafka ter condenado toda a sua obra ao fogo – o mesmo escritor que dizia em seu diário “Sou apenas literatura e não posso nem quero ser outra coisa”. Ter sido um escritor que nunca deveria ter existido, salvo o acidente ter seus desejos contrariados pelo amigo responsável pelo espólio, talvez seja o que mais atraia Blanchot para o texto Kafkiano. – E não há como não observar esse silêncio pairando sobre toda a sua obra, como se ele prevesse desde o início que aquilo que ele falava era perigoso demais para ser escrito, que era trair o segredo, que era ser Orfeu se virando para Eurídice, Orfeu perdendo Eurídice.

Blanchot conseguiu enxergar que somente nas margens poderia encontra de onde vinha aquela coisa chamada literatura. Blanchot mais que isso conseguiu enxergar o Kafka, para além de um mero crítico da religiosidade ou do capitalismo burocrático; um Kafka para além do mar de vozes que não param de se juntar num murmúrio irreversível; um Kafka ancorado no abismo do silêncio.


* É importante notar que quando Blanchot fala de Borges em 1958 ele é virtualmente desconhecido na Europa ocidental e nos Estados Unidos, os grandes polos do pensamento contemporâneo. Ele é nessa época um autor latino-americano.

(re)Começo


  1. Crime e castigo – Fiódor Dostoiévski
  2. Guia dos mochileiros da galáxia – Douglas Adams
  3. Os anos de aprendizagem de Wilhelm Meister – J. W. Goethe
  4. Ficções – Jorge Luis Borges
  5. Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres – Clarice Lispector
  6. O castelo – Franz Kafka
  7. Lavoura arcaica – Raduan Nassar
  8. Coração tão branco – Javier Marías
  9. A vida: modo de usar – Georges Perec
  10. Esperando Godot – Samuel Beckett
  11. O mal de Montano – Enrique Vila-Matas


Para a (re)inauguração desse blog resolvi começar com uma lista. Essa lista não é uma lista dos melhores livros que já li, embora talvez possa servir de base para isso. Também não é uma lista de livros que ache que todos devam ler. É mais simples que isso, é, antes de qualquer coisa, uma lista de livros que me tocaram. Todos os livros mencionados acima fora essenciais não só para a minha compreensão do que é literatura, do que ela deve ser, mas para a minha vida. São livros que me fizeram bem, parafraseando Todorov. 

E mais: foi muito difícil pensar nessa lista, inicialmente contendo 15 livros, devido a dificuldade de medir o peso dos livros quando tenho tão pouco tempo de leitura (afinal? Leio seriamente desde os 18/19 anos e tenho 21 anos recém completados). É tão pouco o que li que até acho pretensioso demais fazer isso – mas bem, talvez como não quero nomear o melhor dos melhores nem instituir um novo cânone não esteja fazendo nada de mal; talvez não haja mal nenhum em simplesmente recordar momentos dessa minha paixão que é a literatura.

Será então esse esforço de relembrar meus livros que sustentarão os próximos posts. Falarei de cada um desses livros não me restringindo aos livros, a uma análise objetiva/analítica mas sim tentando entender, até para mim mesmo, porque é que eles se tornaram tão importantes, e talvez entender um pouco como é que eu leio. Não há, portanto, grandes pretensões críticas nesse início. Quero apenas cair e me perder nas teias da memória.

Até o próximo post!