sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

Aprendendo a escutar - ou uma resenha de Coração tão branco


Recentemente visitei uma exposição e tive a oportunidade de fazer uma questão a própria artista. Confesso que estava nervoso, confesso que minha pergunta pode não ter saído como queria, mas creio que houve um lapso de comunicação. De duas uma, ou a artista não compreendeu a minha pergunta, não teve ouvidos o suficiente para ela ou ela, e essa hipótese me parece falha pela sensibilidade da artista, não teve sensibilidade para entender o que se tratava aquilo que falei. Não interessa aqui o que falei, interessa apenas a primeira hipótese levantada.

Há um romance, belíssimo, de Javier Marías que se chama Coração tão branco. Esse romance conta a história de Juan e a tentativa de entender o que há com seu casamento, com seu pai, com a vida, enfin. Não é porém uma tentativa que se dará como de costume – não será aqui um romance bildung no sentido tradicional onde o personagem encara desafios que o formam e através de acertos e tropeços –; o que ocorre aqui é uma história das coisas silenciosas. Numa forma bastante detetivesca Juan irá abrir seus ouvidos para aquelas coisas silenciosas que raramente prestam nossa atenção. Sejam objetos secundários, sejam indivíduos estranhos que mal atravessam a rua já esquecemos, sejam pensamentos nossos que não damos muita atenção – agora se faz necessário saber a profissão de Juan: tradutor – captar as nuances, tentar recuperar os segredos da língua que se escuta é o seu trabalho. Exemplo notório desse ouvido detetivesco de Juan[1] aparece quando ele discorre sobre o cantar de canções populares que moças espanholas, cubanas, moças em geral, inconscientes se põe a fazer – desvendando a partir de seu ouvido apurado como o que se canta em verdade é a solidão, a alegria, a conformação, o cansaço etecetera.  Não sei se encontrei na literatura personagem mais aberto, mais solidário que esse.

É preciso explicar nesse momento o nome do livro. O título é uma referência a uma frase que Lady Macbeth diz na peça Macbeth quando seu marido mata o rei Duncan. Macbeth, com as mãos ensanguentadas ainda, entra nos aposentos do casal e ao pé do ouvido de sua mulher, sua cúmplice, profere: I have done the deed!. Nada mais; e nada mais é necessário. Como diz Marías/Juan ao escutarmos, esse ato que não temos controle, que não podemos impedir, como os olhos impedem a visão ao se fecharem, ao escutarmos nos tornamos responsáveis, nos tornamos cúmplices do ato. Escutar é estar aberto ao outro, é se pôr junto com o outro e deixá-lo falar, deixá-lo ser. E Lady Macbeth muito consciente disso, consciente ao ponto de se identificar com seu marido, tanta a cumplicidade, invade o quarto do moribundo e o esfaqueia novamente. Suja suas mãos de sangue para ser como o marido. Após escutar não havia mais volta e não há ato mais corajoso possível naquele momento que não o dela – fazer-se assassina. Mas ela, impotente, não pode ser assassina, não é a assassina, na voz dela, my hands are of your color, but i shame to wear a heart so white. No entanto ela é a própria redenção de Macbeth ao assumir também o peso do sangue com a força de seu coração tão branco. O poder da lady é escutar e salvar seu marido de ser soterrado pelo peso só.

Não é, portanto, tarefa simples essa do ouvir. É saber aguentar o outro, é saber tomá-lo junto de si e caminhar com ele. E não há herói mais nobre nesse quesito que Juan: um homem aberto, solidário a qualquer coisa que tente se anunciar, se expressar. Com ouvidos não só para sua mulher, parece ser o mundo que ele quer salvar também. Salvar do esquecimento que ele tanto se lembra que se dá, desse tempo que se corrói sem deixar traços do já foi. Salvar do sufoco desse mundo, que nos prende, nos ensina desde pequeno a ser auto-suficiente, autônomo, automático.

É preciso escutar, é necessário escutar. Não fazemos e, pior, não vemos aqueles que escutam, aqueles que nos libertam, nos tiram o peso já que essa atividade não é barulhenta como a fala, é silenciosa, quer ser silenciosa  - pois se alardear seria esquecer seu propósito, seria inverter a situação e jogar o peso naquele que fala – ato egoísta. Escutar e atento, como Juan jovem faz quando criança de ouvidos abertos às mulheres madrilenhas com suas cantigas; escutar seus gritos de desespero e júbilo. Acolher aquilo que o outro tem a dizer, pois também somos outros.



[1] Quase um fenomenólogo o Juan