terça-feira, 15 de junho de 2010

À memória de Austerlitz


W. G. Sebald termina seu último livro (último publicado em vida) com um relato do narrador sobre o livro que lia, livro que o protagonista, Austerlitz (também título do livro) havia lhe dado no primeiro encontro dos dois. O livro em questão é a tentativa de reconstrução do passado de um velho rabino lituâno.Mas o autor desse livro, em meio a todas as suas peregrinações, nada encontrará, nenhuma memória, nenhum registro; encontra apenas rastros de uma destruição que tudo nivelou. Se havia algo ali antes não se pode mais saber.

Austerlitz relata, através de um conhecido seu, a busca de Jacques Austerlitz, um historiador de arquitetura, para compreender uma inquietação que o persegue durante toda a sua vida: a constante impressão de um exílio, a sensação de não pertencer a lugar algum. Inicialmente tomado por algumas visões toscas e delírios que o acometem regularmente Austerlitz encontra a sua Madaleine numa visita noturna a uma velha estação de metrô. Vagando por esse reduto de almas perdidas na noite se depara com a memória de sua chegada na Inglaterra onde foi recebido pelos pais adotivos. Esse encontro que o põe em mais um delírio acaba por levá-lo aos cantos mais recônditos de sua memória. Começa a tornar-se consciente de certos bloqueios que impunha a si mesmo, como a completa ignorância que tem em relação a Alemanha ou as vertigens que sentia quando tentava se lembrar de certas recordações, até que enfim, quase por um acaso desencobre em Praga não o seu passado, mas breves indícios de que teve um lugar. Indícios de quem poderia ter sido Jacquot (agora de prenome tcheco) Austerlitz.

E durante toda essa caminhada de Austerlitz há alguns elementos que se destacam. Em primeiro lugar o livro é recheado de fotografias, muitas vezes elípticas, que supostamente o próprio teria tirado. Essas fotografias que muito além de exemplificar o que o autor descreve acabam dando-nos uma nova camada de interpretação dos relatos por nos mostrar aquilo que chamava o olhar do fotógrafo, aquilo que talvez o trazia mais perto dos seus objetivos. Enfim, para apontar para aquilo que escolheu mostrar.

Outro ponto é que ser um historiador de arquitetura não é irrelevante. Nas recordações presentes no livro existe um privilégio muito grande a leitura de obras arquitetônicas. O livro tem duas das suas mais belíssimas passagens na descrição do forte de Breendok e da nova Bibliotèque Nationale. Austerlitz enxerga nessas obras verdadeiros monumentos de um pensamento que estará fadado a ser superado e que deixará como sinal de sua existência apenas essas velhas obras arquitetônicas.

E há, por fim, o silêncio que circunda a obra. Ao longo de grande parte das suas peregrinações seja em parques, estações, arquivos, cemitérios, bibliotecas, museus, qualquer que seja o lugar, ou está vazio ou o número de pessoas ali é mínimo. O livro e os relatos de Austerlitz acabam ficando constantemente envolvidos por essa sensação sombria, como se ele fosse apenas um fantasma a vagar por um mundo já há muito abandonado.

Mas Austerlitz não é um livro sobre o resgate da memória de um homem. Esse livro cujo título tão facilmente se confunde com Auschwitz trata-se na verdade de um momento de confronto da europa com um esquecimento. Assim como Austerlitz passa grande parte da sua vida ignorando e muitas vezes fugindo de seu passado, o velho continente, durante os anos subsequentes a segunda guerra mundial, desvia suas atenções da força que nivelou seus estados, seus prédios, seus povos ao solo. Com os olhos virados apenas para o que acontece lá fora (falamos aqui evidentemente da guerra fria) toda o vazio gerado pela destruição da guerra acaba em pouco tempo sendo preenchido pelas forças emergentes da URSS e dos EUA que constroem, junto as suas bases militares, uma nova cultura sem relações naturais com a sua memória. É portanto com o fim da guerra fria, fim desse foco, que a Europa tem a oportunidade de tentar desenterrar o que resta da sua estória. Medo de perceber que para enxergar esse monstro que a assolou basta olhar no espelho.

O livro termina com um livro, um livro que repete, ou antecipa, o caminho de Jacquot (não mais Jacques) Austerlitz: uma busca por seu (ante)passado que encontra apenas terra batida.


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